quarta-feira, 18 de março de 2009

Extraviados - Vale a pena ver de novo

CENA 1 – SÃO PAULO - ESTÚDIO DA TVS – INTERIOR - DIA
Flashback. Imagens de arquivo. Início do programa. AUDITÓRIO animado canta a música-tema do programa. A cada estrofe, um convidado entra.
AUDITÓRIO
O Silvio Santos lá
la la la la la lá
la la la la la la la la la lá
la la la la la lá la la la la la lá
la la la la la la la la la lá,
Pedro de Lara lá,
la la la la la lá
la la la la la la la la la lá
la la la la la lá la la la la la lá
la la la la la la la la la lá
A câmera afasta-se aos poucos, mostrando que na verdade é um programa passando na televisão.
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CENA 2 – ILHA - CÁPSULA DO TEMPO – INTERIOR – NOITE
SANDRO Patrício, cabelos castanho-claros ondulados, olhos azuis, veste roupas do início dos anos 1990. Está animado, sentado no sofá, comendo pipoca e bebendo Teem num copo de vidro da Coca-Cola escrito em árabe. Assiste ao programa e canta junto.
AUDITÓRIO/SANDRO
Aracy de Almeida lá,
la la la la la lá
la la la la la la la la la lá
la la la la la lá la la la la la lá
la la la la la la la la la lá
Batem à porta. Sandro faz uma cara de quem não queria ser interrompido.
SANDRO
(tom elevado)
Já vai!
Sandro vai até a porta e espia pelo olho mágico. MANUELITO está do outro lado, ensopado pela chuva e tremendo de frio.
SANDRO
Quem é?
MANUELITO
(tremendo muito, as palavras saem com dificuldade)
... o frio
SANDRO
Não adianta bater, eu não deixo você entrar.
MANUELITO
... favor, sou o Manuelito
SANDRO
Putz, não posso perder a piada.
Sandro puxa uma alavanca e começa a cantar.
SANDRO
Manuelito lá
la la la la la lá
la la la la la la la la la lá
la la la la la lá la la la la la lá
la la la la la la la la la lá
Manuelito cai dentro da sua sala, por meio de um duto. Está assustado.
SANDRO
Tire essa roupa e tome um banho, tenho uma ducha Corona. Um banho de alegria num mundo de água quente.
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CENA 3 – ILHA - CÁPSULA DO TEMPO – INTERIOR – NOITE
Manuelito está sentado no sofá, vestido com roupas quentes, antigas, e toma café. Ele espirra.
SANDRO
Deus te crie. Melhor tomar um remédio pra não ficar gripado.
Sandro levanta-se, vai até a cozinha e retorna com um comprimido, que entrega para Manuelito.
SANDRO
Se a gripe atacar, Apracur pra curar. Desculpe, amigo, mas não estou autorizado a deixar qualquer pessoa entrar aqui. Isso aqui é um jogo e as regras são: ninguém entra e ninguém sai.
Manuelito olha preocupado para o comprimido.
MANUELITO
Como o Big Brother?
SANDRO
Do livro do Orwell?
MANUELITO
Não, do programa, naturalmente. Isto está no prazo de validade?
SANDRO
Programa Big Brother, não conheço. Deve ser recente. Onde é que passa? Faz sucesso?
MANUELITO
(tomando o comprimido, desconfiado)
Depende o que tu consideras recente. Mas tens televisão, não conheces? Todos os países têm um.
SANDRO
Aqui não pega televisão nenhuma, nem sei direito onde estamos. Mas tenho um videocassete e todos os programas da história da televisão brasileira pra assistir.
MANUELITO
Mas que lugar vem a ser este, ó pá?
SANDRO
É uma cápsula do tempo.
MANUELITO
Tu viajas no tempo?
SANDRO
(OFF) Português burro.
Não. Cápsula do tempo é algo, pode ser uma caixa, um contêiner ou essa estrutura aqui, onde as pessoas colocam vários objetos, vídeos, discos, fotos, todo tipo de coisa e depois lacram, pra ficar fechada por muitos e muitos anos, e abrir depois, pra preservar a memória de uma época.
MANUELITO
Percebo. Mas estás há muito tempo aqui?
SANDRO
Desde 1994. Cheguei aqui um pouco depois do velhinho. Já conheceu ele? Eu o vi pelo olho mágico. Nossa, foi um choque quando o vi aqui, vivinho da silva, mas depois me acostumei.
Manuelito concorda com a cabeça e caminha em volta, olhando os objetos e espirrando de vez em quando.
MANUELITO
Então nunca saíste daqui? Como fazes pra sobreviver? E por que vieste pra cá?
SANDRO
Não, tenho tudo o que preciso aqui, refrigerantes, chips, Danoninho, Dan-up, Cornetto, Cremutcho, chocolates, tenho Lollo, Kri, tenho joguinhos que eu não tenho com quem jogar, muitos programas de televisão. Tenho muita comida enlatada também. Outras coisas o pessoal me mandava pelo mesmo duto por onde você entrou. Mas faz muitos anos que pararam, acho que mudaram as regras, eles me avisaram que podia mudar a qualquer momento. Mas sempre tem um povo que passa aqui por perto e conversa comigo pela porta. O presidente Clinton ficou meu amigo e me traz o que eu preciso.
MANUELITO
Que pessoal? P-p-presidente Clinton?
SANDRO
Os caras da TV que criaram a cápsula e jogaram aqui. Aliás, eu nem sei que lugar é esse, já vim dentro da cápsula. Só estou aqui pra cuidar até virem resgatá-la. Mas já faz um tempo que tô achando que eles esqueceram. É chato assistir sempre aos mesmos programas.
Manuelito olha com cara de desconfiado.
SANDRO
Presidente Clinton é um cara que anda por aí com máscara de presidentes dos Estados Unidos. Conheci ele quando era o Clinton. Depois foi Al Gore e agora é um negão.
MANUELITO
(desconfiadíssimo)
Afro-americano. Hum... caríssimo, é muito a contragosto que te digo que preciso ir-me. Tenho que reencontrar o Doutor U, ele estava me levando para ver a Grande Feiticeira, que talvez me ajude a sair dessa ilha.
SANDRO
Já ouvi falar dela. Como eu disse, converso às vezes com o pessoal do lado de fora, mas nunca deixo ninguém entrar. E eles também estão na ilha há muito tempo, não assistem televisão, vou conversar o quê com eles? Por isso eu te peço (em tom de ordem), fique.
Sandro posiciona uma câmera que está no canto da sala, enquanto Manuelito se prepara para fugir.
SANDRO
Manuelito, olha aqui pra lente da verdade e me diz: O Brasil já é tetra? O Ayrton Senna ainda tá correndo? Já cortaram três zeros do Cruzeiro Real? Que novela a Manchete tá passando?
Manuelito olha sem querer para a lente e fica imobilizado.
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CENA 4 – SÃO PAULO – ESCRITÓRIO DA TV MANCHETE – INTERIOR - DIA
Flashback. Sandro está sentado numa poltrona confortável. Do outro lado da mesa, um EXECUTIVO.
EXECUTIVO
Bem, senhor Sandro Patrício, se o senhor não tem mais nenhuma dúvida, acho que já podemos assinar o contrato.
O executivo passa uma pasta com vários documentos e uma caneta para Sandro.
SANDRO
(assinando)
Ainda não acredito que passei nessa seleção.
EXECUTIVO
Foi uma seleção muito rigorosa, mas o senhor era de longe o candidato mais apto. Ninguém acertou tantas perguntas sobre a história da televisão brasileira.
SANDRO
É uma pena que não vá ao ar. Vocês podiam fazer um programa assim, né? Mas esperem passar esses anos que tenho que ficar na cápsula, eu quero participar.
EXECUTIVO
Tenho certeza que o senhor ganhará muitos prêmios, mas nada que se compare ao cachê que estamos pagando para permanecer confinado. É um grande projeto da emissora.
Toca o telefone. O executivo atende. Numa televisão próxima, Sandro se distrai com o comercial da Honda.
GORDINHO DA HONDA
Eu acordei, tirei meu pijama,
fui pra minha cama e depois dormi
Aí eu fui tomar café e deitei na cama
Peguei o meu pijama
Eu já fui logo pra cama yeah yeah...
EXECUTIVO
Agora se o senhor me der licença, tenho uma reunião importante com o Doutor Bloch. Algumas emissoras ainda não liberaram cópias de todos os seus programas, mas logo resolveremos.
SANDRO
Então, até dia vinte de fevereiro.
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CENA 5 – ILHA - CÁPSULA DO TEMPO – INTERIOR – DIA
Manuelito acorda. Na televisão está passando o Xou da Xuxa com a música “Quem quer pão?”. Sandro está de pijama no sofá, segurando o boneco do Fofão e chorando muito.
SANDRO
Eu não acredito que a TV Manchete faliu e eles me esqueceram aqui. Mas quem ficou responsável por tudo?
MANUELITO
Ainda brigam na justiça até hoje. O SBT comprou as fitas beta de Pantanal e está reprisando, sem autorização do Benedito. Mas tu ainda estás chorando, anima-te homem!
SANDRO
Você está certo.
Sandro levanta ainda chorando, vai até um armário, pega um frasco cheio e bebe todo o seu conteúdo. No mesmo instante em que apoia o frasco na mesa, seu semblante está mudado, ele está sorridente e muito feliz.
SANDRO
(animado)
Manuelito, vamos tomar café e sair daqui. Vamos encontrar a Grande Feiticeira e sair dessa ilha. Vou voltar ao Brasil e reerguer a TV Manchete. Tenho ideias que vão revolucionar a audiência. Minha vida tem sido uma farsa esses anos todos, mas agora tudo vai mudar. Está na hora de eu entrar na linha.
Sandro continua falando sem parar enquanto joga várias coisas numa mochila e tira a câmera do apoio. Manuelito aproxima-se da mesa com o frasco. No rótulo lê-se XAROPE DA FELICIDADE.
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CENA 6 – SÃO PAULO – ESTÚDIO DA TV BANDEIRANTES – INTERIOR – DIA
Flashback. Imagens de arquivo. Edson Cury, o BOLINHA, grava seu programa. WANDO canta Fogo e Paixão e as Boletes dançam ao fundo. Wando aproxima-se da bolete ZULU e faz gracinhas e caras de tarado para fazê-la rir. Ela continua dançando, séria. Passam caracteres na parte inferior do vídeo, informando as cidades e datas dos próximos shows da Caravana do Clube do Bolinha. A música encerra. O auditório aplaude.
BOLINHA
Wando, é um prazer tê-lo aqui novamente, você que vai nos acompanhar mais uma vez pelo Brasil com a nossa caravana.
WANDO
O prazer é meu de estar aqui diante desse auditório maravilhoso.
BOLINHA
Obrigado, querido, volte sempre.
(para a câmera)
Wando, Sidney Magal, Sula Miranda e vários outros artistas, além de mim e das Boletes, estaremos mais uma vez levando a melhor música do Brasil pra você. E agora vamos para o intervalo comercial, e voltamos já.
CORO
Bolinha, Bolinha, está na hora de você entrar na linha,
Bolinha, Bolinha, está na hora de você entrar na linha
Cantando bem você ganha os parabéns,
cantando mal vá cantar no seu quintal...
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CENA 7 – ILHA - CÁPSULA DO TEMPO – INTERIOR – DIA
Sandro posiciona Manuelito em uma cabine no canto da sala.
SANDRO
A produção criou um mecanismo complexo pra que eu só pudesse sair daqui em caso de emergência, mas depois de tanto tempo eu já decifrei. E um outro sistema pra expulsar eventuais intrusos. Primeiro você sai e depois eu. Você não esqueceu de nada, né? Porque eu não poderei retornar, a entrada só é acionada por dentro.
Manuelito nega com a cabeça. Sandro aproxima-se de um “Pula Pirata” em cima da mesa. Várias espadas estão espetadas, faltando apenas uma. Sandro enfia a espada no brinquedo. O pirata salta do barril e, ao mesmo tempo, Manuelito é arremessado pra fora da cápsula do tempo. Sandro sorri. Em seguida, coloca uma fita de vídeo com a etiqueta “Qual é a música? – usar somente em caso de extrema necessidade – as conseqüências podem ser nocivas à sua mente”. No vídeo, Silvio Santos inicia a prova com o Trio Los Angeles.
SILVIO SANTOS
E agora a prova do Segredo Musical. Começamos com o Trio Los Angeles que está...
AUDITÓRIO
... perdendo!
SILVIO SANTOS
(puxando a ficha com a pista)
Sinônimo de iniciar. A quarta letra do alfabeto. O contrário de velho. Formam o título desta música.
Trio Los Angeles confabula.
TRIO LOS ANGELES
Sete notas, Silvio.
SILVIO SANTOS
Maestro Zezinho, sete notas para o Trio Los Angeles.
A mão do Maestro Zezinho aparece ao piano tocando as sete notas. A imagem para. Sandro olha para a TV sorrindo, mas sem saber exatamente o que fazer. Depois de alguns segundos, Silvio Santos, em uma imagem visivelmente montada de outra edição do programa, repete.
SILVIO SANTOS
Segunda chance para o Trio Los Angeles.
A imagem da mão ao piano repete as notas e congela novamente. Sandro olha para a cabine por onde saiu Manuelito e corre pra lá. Coloca um fone de ouvido.
SILVIO SANTOS
Terceira e última chance para o Trio Los Angeles. Qual é a música?
A mão repete as notas.
SANDRO
(gritando)
Começar de novo!
SILVIO (OFF)
Pablo, qual é a música, Pablo?
Sandro olha pra cima e vê uma luz, que preenche a cena. Inicia a música “Começar de novo” de Ivan Lins.
SANDRO (OFF)
Nãããoo! Ivan Lins, nãããoo!
Começar de novo e contar comigo
vai valer a pena ter amanhecido

quarta-feira, 11 de março de 2009

Extraviados - Diretas já!

CENA 1 – SÃO PAULO – VALE DO ANHANGABAÚ – EXTERIOR – NOITE
Caracteres: 16 DE ABRIL DE 1984
Flashback. Uma grande multidão, muitos segurando bandeiras do Brasil e cartazes pedindo pelas “Diretas já!”, e vestindo camisetas amarelas. Políticos discursam no palanque e são muito aplaudidos. O PAI DE MANUELITO abre caminho pela multidão, segurando MANUELITO CRIANÇA firme pela mão. O menino parece assustado.
OSMAR SANTOS
(em alto-falante)
O Anhangabaú já tem 1,7 milhão de pessoas!
O PAI DE MANUELITO pára e coloca o filho nos ombros.
PAI DE MANUELITO
Consegues espiar?
MANUELITO CRIANÇA
Estou a ver, papai.
POVO
Um, dois, três, quatro, cinco mil! Queremos eleger o Presidente do Brasil!
No palanque, DOUTOR U toma o microfone.
DOUTOR U
Cidadãos do meu país, daqui a alguns dias será votada a emenda Dante de Oliveira, a emenda das diretas...
PAI DE MANUELITO
Quem está a falar? Cá não se pode ver nada.
MANUELITO CRIANÇA
Não sei, papai, é um velhinho.
Close no Doutor U e corta para close no Manuelito Criança.
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CENA 2 – ILHA – ACAMPAMENTO – EXTERIOR – DIA
Doutor U está numa elevação, discursando, no meio de uma dúzia de pessoas.
DOUTOR U
Basta, meus amigos! Chegou a hora de acabarmos com a tirania que viceja desde tempos imemoriais nessa ilha. O povo desta ilha está cansado de desmandos, opressão, truculência, desrespeito. O povo desta ilha quer o autogoverno, quer decidir por si mesmo os rumos do seu destino. Chega desta patifaria! Chega desta bruxaria! Chega de engodos! Chega...
Doutor interrompe seu discurso com a chegada de BODHI e MANUELITO. Close em Manuelito.
DOUTOR U
Amigo estadunidense, seja benvindo. Posso acreditar que você desistiu de viver isolado e resolveu aderir à nossa luta.
BODHI
Não, Doutor U, minha vida é o surfe, não me interesso por política.
DOUTOR U
Ah, meu amigo, quem não se interessa pela política, não se interessa pela vida. Mas quem é esse que te acompanha?
MANUELITO
(incrédulo e gaguejando)
Meu nome é Manuelito, mas o senhor não é aquele político famoso que...
DOUTOR U
Você parece surpreso. Meu desaparecimento deve ter causado grande comoção lá fora. No início eu tentei sair daqui de todas as formas, ainda estava apegado à minha vida anterior, mas logo descobri, entre esse povo tão oprimido, que eu tinha uma nova missão.
MANUELITO
Mas quem os está a oprimir?
DOUTOR U
Aqueles que sempre o fizeram, os donos do poder nesta terra, os Mesmos de sempre.
MANUELITO
E não existem meios de sair deste lugar?
DOUTOR U
Eu não disse isso. Apenas parei de procurar. Mas vejo que o seu grande desejo é sair daqui. Não o censuro. Não conheço ninguém que já tenha saído, mas a Grande Feiticeira conhece todos os segredos desta ilha.
MANUELITO
O senhor pode me levar até ela? Ela me ajudará?
DOUTOR U
Levá-lo, sim. Quanto a ela ajudá-lo... Meu amigo, ela é a líder dos Mesmos, é justamente contra ela que estamos lutando. Vai ser difícil dobrá-la. Uma luta às vezes dura toda uma vida.
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CENA 3 - BRASÍLIA – CONGRESSO NACIONAL – INTERIOR - NOITE
Caracteres: 5 DE OUTUBRO DE 1988
Flashback. O plenário da Câmara dos Deputados está lotado. Muitos flashes das máquinas fotográficas da imprensa. DOUTOR U, ao centro da mesa, com a Constituição Federal nas mãos, fica de pé e inicia seu discurso ao microfone.
DOUTOR U
Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho.
Entre os presentes, ANTONIETA Marquesine e H. BRANDÃO, duas senhoras impecavelmente vestidas, com crachás da imprensa, tentam encontrar o melhor lugar para assistir ao discurso. Conversam com dificuldade.
H. BRANDÃO
Amiga, tenho certeza de que esse é um momento histórico. É algo que vou contar pros meus netos.
ANTONIETA
Sim, tudo começa hoje, você nem faz idéia. Mas querida, você não tem netos, você nunca quis ter filhos, só pra parecer moderninha.
H. BRANDÃO
Mas tenho os meus meninos da creche, você sabe que sou como uma avó pra eles. Pelo menos não tenho o útero seco. E não me xingue, que fui eu que consegui essas credenciais com meu namorado daquele jornal.
ANTONIETA
Shhhh... estamos perdendo o discurso.
DOUTOR U
...que este Plenário não abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa. Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-Já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda, Brasil!
Aplausos e muitos flashes de máquinas fotográficas.
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CENA 4 – ILHA – EXTERIOR – ANOITECENDO
O grupo do Doutor U caminha pela mata.
MANUELITO
Doutor, queira perdoar-me a indiscrição, mas o senhor está muito bem de saúde pra quem já passou dos noventa anos.
DOUTOR U
(sorrindo)
São os ares benfazejos e as boas águas dessa ilha. Você ainda presenciará muitos milagres aqui, filho.
Manuelito ouve um leve ruído, parecendo uma música.
MANUELITO
Vós estais a ouvir isso?
O ruído aumenta e todos começam a ouvir, ficando visivelmente transtornados.
BODHI
Ah não, é por isso que não venho pra esse lado da ilha.
O ruído aumenta mais. Agora pode-se discernir claramente a abertura de “O Guarani”, de Carlos Gomes.
DOUTOR U
É a Voz! Corram todos, corram o mais longe que puderem!
Todos correm e se dispersam. A voz parece aumentar cada vez mais. Manuelito aumenta as passadas e a voz diminui, parecendo distante. Ela para de correr e percebe que está perdido.
MANUELITO (OFF)
Está muito escuro aqui. Naturalmente, se já são dezenove horas. Mas como sei que são dezenove horas?
Manuelito olha para o lado e vê um hipopótamo encarando-o. Troveja e Manuelito se distrai. O hipopótamo não está mais lá. Começa a chover.
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CENA 5 – ILHA – EXTERIOR – NOITE
O restante do grupo consegue se reunir. Começa a chover muito forte.
BODHI
Falta o portuga. Como vamos achá-lo no meio dessa tempestade?
Doutor U olha para cima e sente a chuva em seu rosto.
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CENA 6 - ANGRA DOS REIS – CASA DE PRAIA DE LUÍS - INTERIOR – DIA
Caracteres: 12 DE OUTUBRO DE 1992
Flashback. Doutor U conversa ao telefone.
DOUTOR U
Exato, Presidente, o partido deve parar de pressionar por cargos no ministério. (pausa) Sim, eu me esforçarei pra isso, reafirmo o meu compromisso com a manutenção da governabilidade. (pausa) Então, até breve, Presidente.
(desligando e virando-se para RENATO)
Então, meu caro Renato, temos que discutir aquele ponto sobre a campanha. Eu não acho que o parlamentarismo...
No sofá, à parte, SENHORA U e SENHORA S. Doutor U, Renato, DOUTOR S e LUÍS conversam ao fundo.
SENHORA S
Mas o Dr. U não pára, sempre com o mesmo vigor.
SENHORA U
Ele é incansável mesmo, sempre em busca de novos desafios.
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CENA 7 - ANGRA DOS REIS – CASA DE PRAIA DE LUÍS – EXTERIOR – DIA
Doutor U, Doutor S e suas esposas se despedem de Luís e Renato. Ao fundo, um helicóptero aguarda ligado.
DOUTOR U
Obrigado pelo final de semana, meu amigo.
LUÍS
Mas você quase não descansou, trabalhou o tempo todo.
DOUTOR U
É preciso, meu amigo, é preciso. Esse país ainda tem muito o que melhorar, e é preciso uma luta constante.
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CENA 8 - ALTO MAR – HELICÓPTERO – INTERIOR – DIA
Helicóptero sobrevoa o mar no meio de fortes chuvas. Turbulência. Senhora U e Senhora S estão apreensivas e rezam. Doutor U e Doutor S apertam as mãos delas. Close no Doutor U, olhando pela janela, alternando com flashes dos seus discursos nas cenas 1 e 3.
DOUTOR U (OFF)
(sobre flashes que se alternam)
Eu não quero morrer de raiva, nem de mágoa, nem de doença. Eu quero morrer na luta. Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço.
Câmera desvia do Doutor U para a parte externa, onde a chuva não permite distinguir nada.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Extraviados

CENA 1 - ILHA – EXTERIOR – DIA
MANUELITO abre os olhos. Ele é loiro, cabelos curtos e usa bigodes igualmente loiros. Fala português corretíssimo com uma variante do sotaque de Portugal. Fala outros idiomas, sempre com o sotaque muito carregado. A luz forte o confunde. Ele vê o presidente Obama à sua frente.
BODHI
Hey man, get out of here.
MANUELITO
Quem és tu, gajo?
Manuelito se acostuma à luz e percebe que, na verdade, o homem está usando uma máscara do Obama. Bodhi tira a máscara. Tem um jeitão de surfista e é muito parecido com o ator Patrick Swayze dezoito anos atrás.
BODHI
Cara, vamo logo, se você ficar aqui, vai morrer.
Eles correm alucinados pela mata. Sentem uma presença que os segue. Não sabem o que é, mas parece muito próxima, grudada e respirando no cangote deles. Close em Manuelito, assustado.
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CENA 2 - REINO DAS PALAVRAS – CASA DO MANUELITO - INTERIOR – NOITE
Caracteres: DEZEMBRO DE 2008.
Flashback. Manuelito conversa ao telefone. Na tevê, o noticiário nacional.
MANUELITO
É como estou a te dizer, Pasqualouro, estamos todos muito apreensivos com esta reforma ortográfica, tem gente que já está a fugir do país.
ÂNCORA DO TELEJORNAL
O clima é de tensão em todo o Reino das Palavras, com a entrada em vigor do acordo de reforma ortográfica, entre todos os países de língua portuguesa. O país é mundialmente conhecido pelo apego rigoroso à norma culta e boa parte da opinião pública condena veementemente o acordo, ratificado pelo parlamento controlado pelo novo primeiro-ministro. O rei foi acusado de conivência.
MANUELITO
Estou a tentar comprar passagem para o Brasil, mas os vôos já estavam lotados em razão do Natal. Parece-me que está tudo atrasado, um caos aéreo como aquele que vós tivestes no ano passado.
ÃNCORA DO TELEJORNAL
Nas últimas semanas, a proximidade da mudança lançou o país num clima de crescente insegurança. Por enquanto, houve apenas focos isolados de manifestações e uma tentativa de greve dos empregados de gráficas e editoras, logo debelados pelas autoridades. Mas a população teme uma forte onda de violência no final do ano. Todos crêem que uma guerra civil está por vir.
Manuelito, ainda ao telefone, olha assustado para a tevê.
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CENA 3 – ILHA – EXTERIOR – DIA
Manuelito e Bodhi param pra descansar. A presença grudenta não os segue mais.
BODHI
Quem é você, afinal, nunca te vi aqui antes.
MANUELITO
Chamo-me Manuel, sou cidadão do Reino das Palavras. Estou um pouco confuso, que lugar é este.
BODHI
Nem eu sei direito, faz quase 20 anos que estou aqui, peguei a grande onda na Austrália, foi a grande busca da minha vida. Achei que ia morrer, mas vim parar nessa ilha maluca.
MANUELITO
Então cá é uma ilha? E tem aeroporto? Algum hotel. Estou a precisar de um banho.
BODHI
Cara, você fala engraçado. Não tem nada nessa ilha não, só uma galera estranha que vive andando de um lado pro outro atrás de um velhinho gente fina que parece um tipo de chefe deles, mas eles não me incomodam. Tem esse treco que não larga a gente, parece grudado, eca, mas é só tomar cuidado onde a gente passa. Geralmente fico do outro lado da ilha pegando umas ondas, lá não tem perigo.
MANUELITO
E sabes como eu faço para sair desta ilha? Algum barco eles hão de ter.
BODHI
Eu não sei, não, eu curto esse lugar. Praia, sol, ondas, não preciso trabalhar. Nunca tentei sair daqui. Mas o velhinho deve saber.
MANUELITO
Tu podes me levar até ele?
Antes que Bodhi responda, a presença grudenta surge novamente e eles saem correndo, um pra cada lado. Logo a ameaça para de respirar no cangote de Manuelito, e ele vai procurar Bodhi.
Manuelito vê um brilho no chão e pega o objeto na mão. É uma moeda, aparentemente de ouro. Quando olha à sua frente, vê um menino louro, aparentando uns 6 ou 7 anos, usando roupas aristocráticas, botas, uma capa e uma espada.
Bodhi o encontra. Manuelito se distrai por um instante e, quando olha novamente, o garoto não está mais lá. Manuelito guarda a moeda no bolso, sem que Bodhi perceba.
MANUELITO (OFF)
Raios! Será que estou a ter alucinações? Deve ser efeito colateral daquele pó dos infernos. Por que não esperei mais alguns dias pra tomar um voo pro Brasil?
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CENA 4 - REINO DAS PALAVRAS – EXTERIOR – DIA
Caracteres: JANEIRO DE 2009.
Flashback. As ruas estão um caos. Carros abandonados, barricadas nas autoestradas, lixo espalhado, pessoas feridas, gente correndo pra todos os lados, tanques do exército. Manuelito caminha desorientado e encontra EMÍLIA. Ela carrega o VISCONDE de Sabugosa a tiracolo e segura sua canastra, cheia de tralhas.
MANUELITO
Marquesa de Rabicó, que alvissareiro encontro em um dia de tantos infortúnios. Temia pela sua segurança.
EMÍLIA
Pois então seu Manuelito, estou picando a minha mula. Vou voltar pro sítio de Dona Benta que é mais seguro. Só fui pegar este sabugo de milho que cismou em fazer um discurso na praça pra acalmar os ânimos. Quase foi pisoteado.
MANUELITO
Folgo em saber que estais bem, a situação está deveras complicada. A única vez que vi o país assim foi naquela epidemia de cegueira.
EMÍLIA
Bom, seu Manuelito, nós temos que ir mesmo. Só vou procurar um lugar mais tranquilo pra tomarmos a nossa dose de pó-de-pirlimpimpim e voltar pra lá. (pausa) Nossa, tive um mal estar agora. Pé-de-moleque ainda tem hífen. E pó-de-pirlimpimpim? Acho que sim. Espero que isso não interfira no efeito dele. Senhor Manuelito, acho melhor o senhor se mandar também, a coisa tá ficando feia. Se precisar, sobrou um pouquinho de pó na cômoda lá no quarto do meu hotel, pode pegar. Mas cuidado pra não calcular errado a dose, sabe lá onde o senhor vai parar.
Manuelito e Emília se despedem rapidamente. Ele corre até o hotel dela. Não há ninguém na recepção e ele sobe direto. O quarto é o 101. Manuelito logo encontra o pó-de-pirlimpimpim. Antes que possa calcular com calma a dose, uma bomba explode na rua em frente. Ele cheira o pó rapidamente.
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CENA 5 - ILHA – EXTERIOR – DIA
MANUELITO
Então és estadunidense? O que fazias em teu país, ó pá?
BODHI
(enrolando)
Digamos que eu trabalhava com bancos.
Antes que Manuelito continue a conversa, ele vê um pedaço de papel pregado numa árvore, com um desenho.
MANUELITO
Mas que diabos? Quem é que tem tempo pra ficar desenhando neste lugar. Será que é aquele miúdo que eu vi mais cedo? E pra que desenhar um chapéu?
BODHI
Dizem que é o francês, um sujeito esquisito que mora na ilha há muitas décadas. É da paz, mas não fala com ninguém. Só fica desenhando, sempre a mesma coisa, sempre esse chapéu, e espalha o desenho pela ilha. O que é miúdo?
Ouvem-se algumas vozes.
BODHI
Estamos chegando. É o acampamento do velhinho.
MANUELITO
Será que ele pode mesmo me ajudar a sair daqui?
BODHI
Cara, bote fé no velhinho, o velhinho é demais!
Manuelito e Bodhi fazem uma curva e encontram um pequeno grupo. Ao centro, um senhor de aspecto frágil, numa pequena elevação, faz um discurso inflamado. Suas feições ainda não são nítidas. Manuelito se aproxima e arregala os olhos. Close no DOUTOR U.
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