quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A caravela amarela – 25 a 28/12/2007

LONDRES
Senhora Minha Mãe Lilizinha,
Hei de contar a nova do achamento destas terras britânicas, que ora nesta navegação se acharam, e não me furtarei de lhe relatar, assim como eu melhor puder, estas belezas e riquezas d'além mar, se assim mo permitirem a Providência e a imigração. Creia bem por certo que registrarei aqui tão somente o que vi, o que imaginei e o que julguei ter visto, em sã ou insana consciência, que é bem dizer, qualquer coisa que me dê nas telhas.
No dia do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, verbo feito carne que veio habitar entre os homens, a nau aportou nas terras que, segundo relatos mui antigos, encontram-se sob o governo da imortal rainha Elizabeth II, filha de Cate Blanchet, cujos ancestrais vieram das terras altas mais ao norte, aparentados de Christopher Lambert. Tio Eric Hobsbawm, que viu todas essas coisas, poderá explicar melhor.
Chovia, e poucas ocasiões tivemos, durante a longa estada naquelas paragens, de ver o azul do céu. O que não nos chegou a entristecer, pois as precipitações e o acinzentado do firmamento davam um ar deveras sofisticado ao lugar.
Os nativos a mim me pareceram pessoas mui religosas, pois numa vila de tão grandes dimensões, poucos se dedicavam ao trabalho naquele dia feriado, e quase não conseguimos deslocar-nos às regiões habitáveis, porque todos os meios de transporte encontravam-se parados. Mas enfim logramos êxito, e chegamos a um bairro com casas de tijolinhos vermelhos, e soubemos que era o sítio certo.
Os habitantes do lugar são de todas as espécies e qualidades. A feição deles é serem de uma tonalidade escura, as mulheres usam um adesivo na testa, e são donos de mercadinhos de comida para microondas e outras especiarias, o que muito nos confundiu, pois de há muito que o astrolábio, a bússola e o GPS nos ensinaram o correto caminho para as Índias, e não deveria ser ali. Há também muitas pessoas de olhos puxados, com máquinas fotográficas, e que podem ser vistas por toda parte. Outros são negros, outros morenos e até alguns poucos loiros. De todo modo, são pessoas recatadas, muito ocupadas de cobrir suas vergonhas, e extremamente dóceis.
Seu idioma é deveras esquisito, um inglês de pronúncias estranhas; possivelmente não são dados a assistir aos originais e sempre bem elaborados filmes americanos, para se aperfeiçoarem - embora Sua Majestade tenha ganhado um Oscar. De quando em quando ouve-se pelas ruas a língua mátria, que os eternos Camões e Manuelito tanto cantaram em verso e prosa.
Fazem tudo ao contrário, como que a pregar uma peça com os visitantes. Invertem a direção dos automóveis, dirigem pelo lado esquerdo, tudo para pegar os estrangeiros no susto, sempre exercitando o sofisticado humor inglês. São educadíssimos e respeitam os sinais de trânsito, mas reprimem um impulso destrutivo de atropelar pedestres mal-educados que atravessam quando o sinal lhes não permite.
Tanto apreço nutrem pela pontualidade que decidiram eles mesmos organizar as horas do mundo. E sua principal atração é um relógio sem nome numa torre, o qual, na falta de identidade própria, apropriou-se do nome do sino. Em frente a ele, do outro lado do Tâmisa, a mais simples e graciosa atração, que a nosso modo de ver ofusca os séculos de tradição do Big Ben: London Eye, o olho de Londres, nome perfeito para a encantadora roda-gigante de onde se pode ver boa parte da vila. E, agraciados que fomos por St. Stephen no dia de sua glória, pudemos fazê-lo num dos raros dias de sol inglês.
Lojas são muitas; infindas. E em tal maneira convidativas ao consumismo que, querendo-as aproveitar, compra-se nelas tudo, coisa que não fizemos, pois os nativos ficaram com todo o ouro e prata de Potosí e das Gerais, e nossos reais são modestos perto de sua moeda. A bem da verdade, mesmo seus vizinhos mais próximos torcem o nariz para os salgados preços.
Para os supersticiosos, é terra povoada de espíritos cautelosos e sobremaneira preocupados com a segurança dos que ainda se encontram entre os vivos, os quais habitam os túneis do metrô. Nós mesmos, ainda que céticos, não cessamos de ouvir, a todo momento, uma voz, ora masculina, ora feminina, advertindo-nos do perigo da morte certa: "Please, mind the gap between the train and the platform. "
E nesta maneira, minha mãe, dou-lhe aqui breve relato do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, sei que hás de me perdoar, que o desejo que tinha, de vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo. Mas hei de escrever mais.
Beijo-lhe as mãos e peço-lhe a bênção.
Desta Londres, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, nestes últimos dias do ano do centenário de Dercy Gonçalves, Oscar Niemeyer e dona Canô.
Dom Marquinho


Thank's to Richard the Lionheart, Mel Gibson the Braveheart, Mary Stuart and Mary Poppins. God save me!

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