CENA 1 - ILHA – EXTERIOR – DIA
MANUELITO abre os olhos. Ele é loiro, cabelos curtos e usa bigodes igualmente loiros. Fala português corretíssimo com uma variante do sotaque de Portugal. Fala outros idiomas, sempre com o sotaque muito carregado. A luz forte o confunde. Ele vê o presidente Obama à sua frente.
BODHI
Hey man, get out of here.
MANUELITO
Quem és tu, gajo?
Manuelito se acostuma à luz e percebe que, na verdade, o homem está usando uma máscara do Obama. Bodhi tira a máscara. Tem um jeitão de surfista e é muito parecido com o ator Patrick Swayze dezoito anos atrás.
BODHI
Cara, vamo logo, se você ficar aqui, vai morrer.
Eles correm alucinados pela mata. Sentem uma presença que os segue. Não sabem o que é, mas parece muito próxima, grudada e respirando no cangote deles. Close em Manuelito, assustado.
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CENA 2 - REINO DAS PALAVRAS – CASA DO MANUELITO - INTERIOR – NOITE
Caracteres: DEZEMBRO DE 2008.
Flashback. Manuelito conversa ao telefone. Na tevê, o noticiário nacional.
MANUELITO
É como estou a te dizer, Pasqualouro, estamos todos muito apreensivos com esta reforma ortográfica, tem gente que já está a fugir do país.
ÂNCORA DO TELEJORNAL
O clima é de tensão em todo o Reino das Palavras, com a entrada em vigor do acordo de reforma ortográfica, entre todos os países de língua portuguesa. O país é mundialmente conhecido pelo apego rigoroso à norma culta e boa parte da opinião pública condena veementemente o acordo, ratificado pelo parlamento controlado pelo novo primeiro-ministro. O rei foi acusado de conivência.
MANUELITO
Estou a tentar comprar passagem para o Brasil, mas os vôos já estavam lotados em razão do Natal. Parece-me que está tudo atrasado, um caos aéreo como aquele que vós tivestes no ano passado.
ÃNCORA DO TELEJORNAL
Nas últimas semanas, a proximidade da mudança lançou o país num clima de crescente insegurança. Por enquanto, houve apenas focos isolados de manifestações e uma tentativa de greve dos empregados de gráficas e editoras, logo debelados pelas autoridades. Mas a população teme uma forte onda de violência no final do ano. Todos crêem que uma guerra civil está por vir. Manuelito, ainda ao telefone, olha assustado para a tevê.
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CENA 3 – ILHA – EXTERIOR – DIA
Manuelito e Bodhi param pra descansar. A presença grudenta não os segue mais.
BODHI
Quem é você, afinal, nunca te vi aqui antes.
MANUELITO
Chamo-me Manuel, sou cidadão do Reino das Palavras. Estou um pouco confuso, que lugar é este.
BODHI
Nem eu sei direito, faz quase 20 anos que estou aqui, peguei a grande onda na Austrália, foi a grande busca da minha vida. Achei que ia morrer, mas vim parar nessa ilha maluca.
MANUELITO
Então cá é uma ilha? E tem aeroporto? Algum hotel. Estou a precisar de um banho.
BODHI
Cara, você fala engraçado. Não tem nada nessa ilha não, só uma galera estranha que vive andando de um lado pro outro atrás de um velhinho gente fina que parece um tipo de chefe deles, mas eles não me incomodam. Tem esse treco que não larga a gente, parece grudado, eca, mas é só tomar cuidado onde a gente passa. Geralmente fico do outro lado da ilha pegando umas ondas, lá não tem perigo.
MANUELITO
E sabes como eu faço para sair desta ilha? Algum barco eles hão de ter.
BODHI
Eu não sei, não, eu curto esse lugar. Praia, sol, ondas, não preciso trabalhar. Nunca tentei sair daqui. Mas o velhinho deve saber.
MANUELITO
Tu podes me levar até ele? Antes que Bodhi responda, a presença grudenta surge novamente e eles saem correndo, um pra cada lado. Logo a ameaça para de respirar no cangote de Manuelito, e ele vai procurar Bodhi. Manuelito vê um brilho no chão e pega o objeto na mão. É uma moeda, aparentemente de ouro. Quando olha à sua frente, vê um menino louro, aparentando uns 6 ou 7 anos, usando roupas aristocráticas, botas, uma capa e uma espada. Bodhi o encontra. Manuelito se distrai por um instante e, quando olha novamente, o garoto não está mais lá. Manuelito guarda a moeda no bolso, sem que Bodhi perceba.
MANUELITO (OFF)
Raios! Será que estou a ter alucinações? Deve ser efeito colateral daquele pó dos infernos. Por que não esperei mais alguns dias pra tomar um voo pro Brasil?
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CENA 4 - REINO DAS PALAVRAS – EXTERIOR – DIA
Caracteres: JANEIRO DE 2009.
Flashback. As ruas estão um caos. Carros abandonados, barricadas nas autoestradas, lixo espalhado, pessoas feridas, gente correndo pra todos os lados, tanques do exército. Manuelito caminha desorientado e encontra EMÍLIA. Ela carrega o VISCONDE de Sabugosa a tiracolo e segura sua canastra, cheia de tralhas.
MANUELITO
Marquesa de Rabicó, que alvissareiro encontro em um dia de tantos infortúnios. Temia pela sua segurança.
EMÍLIA
Pois então seu Manuelito, estou picando a minha mula. Vou voltar pro sítio de Dona Benta que é mais seguro. Só fui pegar este sabugo de milho que cismou em fazer um discurso na praça pra acalmar os ânimos. Quase foi pisoteado.
MANUELITO
Folgo em saber que estais bem, a situação está deveras complicada. A única vez que vi o país assim foi naquela epidemia de cegueira.
EMÍLIA
Bom, seu Manuelito, nós temos que ir mesmo. Só vou procurar um lugar mais tranquilo pra tomarmos a nossa dose de pó-de-pirlimpimpim e voltar pra lá. (pausa) Nossa, tive um mal estar agora. Pé-de-moleque ainda tem hífen. E pó-de-pirlimpimpim? Acho que sim. Espero que isso não interfira no efeito dele. Senhor Manuelito, acho melhor o senhor se mandar também, a coisa tá ficando feia. Se precisar, sobrou um pouquinho de pó na cômoda lá no quarto do meu hotel, pode pegar. Mas cuidado pra não calcular errado a dose, sabe lá onde o senhor vai parar.
Manuelito e Emília se despedem rapidamente. Ele corre até o hotel dela. Não há ninguém na recepção e ele sobe direto. O quarto é o 101. Manuelito logo encontra o pó-de-pirlimpimpim. Antes que possa calcular com calma a dose, uma bomba explode na rua em frente. Ele cheira o pó rapidamente.
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CENA 5 - ILHA – EXTERIOR – DIA
MANUELITO
Então és estadunidense? O que fazias em teu país, ó pá?
BODHI
(enrolando)
Digamos que eu trabalhava com bancos.
Antes que Manuelito continue a conversa, ele vê um pedaço de papel pregado numa árvore, com um desenho.
MANUELITO
Mas que diabos? Quem é que tem tempo pra ficar desenhando neste lugar. Será que é aquele miúdo que eu vi mais cedo? E pra que desenhar um chapéu?
BODHI
Dizem que é o francês, um sujeito esquisito que mora na ilha há muitas décadas. É da paz, mas não fala com ninguém. Só fica desenhando, sempre a mesma coisa, sempre esse chapéu, e espalha o desenho pela ilha. O que é miúdo?
Ouvem-se algumas vozes.
BODHI
Estamos chegando. É o acampamento do velhinho.
MANUELITO
Será que ele pode mesmo me ajudar a sair daqui?
BODHI
Cara, bote fé no velhinho, o velhinho é demais!
Manuelito e Bodhi fazem uma curva e encontram um pequeno grupo. Ao centro, um senhor de aspecto frágil, numa pequena elevação, faz um discurso inflamado. Suas feições ainda não são nítidas. Manuelito se aproxima e arregala os olhos. Close no DOUTOR U.
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Um comentário:
Muito bom Marco!
Adorei ler...
Grande beijo.
Martha.
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